
Estado, quando, como e porque
Conceito de Estado | Origens do Estado | Fins do Estado
Por Pedro Cabal
"O estado é a grande ficção através da qual
todos tentam viver às custas de todos."
Frédéric Bastiat
Prezados alunos, o site consultor jurídico noticiou em 08.02.2020[1] que o Tribunal de Justiça da Paraíba decidiu que o Estado tem o dever de fornecer medicamentos para portador de calvície. Isso mesmo, calvície. A justificativa foi a de que “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, devendo ser assegurada mediante políticas sociais e econômicas que promovam o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Segundo esse portal de notícias jurídicas, o Magistrado Relator do Caso, Onaldo Rocha de Queiroga, afirmou que restou comprovada a imprescindibilidade do uso contínuo da medicação prescrita e que ação tinha “...por finalidade assegurar o direito fundamental à vida de uma pessoa que se encontra acometida de uma doença cuja gravidade é evidente e que não possui condições financeiras para custeá-la”. Tudo pode ser conferido nos autos do processo nº. 0804217-35.2018.815.0000.
Esse tipo de demanda perante o Estado encontra impulso no contexto da mentalidade mística largamente difundida segundo a qual o ente estatal é detentor de poderes sobrenaturais, não estando ele submetido sequer às leis da natureza. Com efeito, a crença disseminada é a de que tudo está ao alcance do Estado e ele tem o dever de garantir, repare-se, até a felicidade[2] das pessoas.
Sim, há quem defenda ser dever do Estado garantir o mínimo essencial para que o homem possa buscar a sua felicidade, por meio da concretização dos Direitos Sociais. Tanto é assim, que, em 2010, o então Senador da República Cristovam Buarque, apresentou um Projeto de Emenda à Constituição que altera o art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil para constar que os Direitos Sociais são essências à busca da felicidade.
Mas, que ente é esse que desperta tamanha fé no homem do nosso tempo? Como surgiu? De onde veio? Que poderes, de fato, possui?
As respostas as essas indagações podem ser bem complexas e demandar o exame de um conjunto de raciocínios refinados dos mais diversos filósofos que ao longo dos últimos 2400 anos tentaram capitar e traduzir em linguagem a definição do conceito de Estado, rastrear as suas origens e determinar a sua natureza. Nesse texto, porém, as pretensões não são tão ousadas; o modesto objetivo do mesmo é apenas fazer a suma das ideias mainstream sobre a origem e a natureza do estado e deixar, ao final, alguns pontos para reflexão. Vejamos.
Primeiramente, diga-se que segundo Dalmo de Abreu Dallari, “a denominação Estado (do latim status = estar firme), significando situação permanente de convivência e ligada à sociedade política, aparece pela primeira vez em ‘O Príncipe’ de MAQUIAVEL, escrito em 1513, passando a ser usada pelos italianos sempre ligada ao nome de uma cidade independente, como, por exemplo, ‘stato di Firenze’”[3]. Contudo, registrasse que até meados do século XVIII na Espanha e na Alemanha, o termo “estado” denominava também extensas possessões rurais, de domínio particular, cujos proprietários tinham poder jurisdicional, eram os PREUSS[4].
Mas o certo é que “Estado” como significação da institucionalização de Sociedades Políticas, surge mesmo no século XVI. Admitamos esse marco. Contudo, é posição dominante entre os autores que, muito antes desse marco histórico, o ente estatal já se verificava na história sob as mais diversas denominações onde quer que se achassem “sociedades políticas que, com autoridade superior, fixaram as regras de convivência de seus membros”.
Certo, mas, mais importante do que saber quando o termo “Estado” foi usado primeiramente, é investigar quando surgiram as primeiras sociedades políticas a quem a significação desse termo remete, e porque vieram a surgir. Cumpre, pois buscar repostas a três perguntas básicas:
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quando, na linha do tempo, surgiu o Estado?
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de que forma se deu o seu advento? e,
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quais os motivos que determinaram o seu surgimento?
À primeira indagação três principais correntes doutrinárias tentam dar uma resposta[5], quais sejam:
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a corrente naturalista [6] sustenta que o Estado, assim como a própria sociedade, sempre existiu e que desde tempos imemoriais o homem acha-se integrado em organizações sociais dotadas de poder social e de autoridade que garante o comportamento padrão de todos os indivíduos do grupo [7].
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A corrente contratualista [8] admite que sociedades humanas existiram sem o Estado durante algum tempo e que, depois, pelos mais diversos motivos, tais sociedades instituíram o ente estatal para atender às necessidades ou às conveniências dos grupos sociais. Frise-se que, pela natureza mesma dessa concepção, seus expoentes advertem que a formação dos estados deu-se de forma assincrônica na face da Terra.
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A corrente histórica [9] defende que a concepção de Estado não é um idéia genérica e válida para qualquer tipo de sociedade no tempo, mas, sim, um conceito preciso historicamente referenciado, que surge “quando nascem a ideia e a prática da soberania, o que só ocorreu no século XVII”[10], mais precisamente por ocasião da paz de Westfália [11].
Disputam o fornecimento de uma explicação razoável à segunda indagação duas correntes principais:
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corrente naturalista [12] que afirmam a formação natural ou espontânea dos Estados, em virtude das mais diversas contingências históricas e ambientais.
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corrente contratulista [13] sustenta a formação contratual dos Estados, ou seja, que o ente estatal formou-se a partir de ato de vontade de alguns ou de todos os homens.
Para responder a indagação pertinente àquilo que deu causa e determinou o surgimento do Estado, rivalizam quatro correntes, a saber:
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corrente familial, que situa o núcleo social fundamental na família, no clã, e sustenta que cada família primitiva se expandiu em complexidade e deu origem a um ente estatal, e que do respeito pelo chefe da família teria se originado o respeito pelo chefe do Estado.
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corrente dos atos de força, que ressaltando que como a desigualdade dos homens é resultado inelutável das próprias leis da natureza o Estado surgiu em virtude da superioridade de indivíduos e grupos sociais uns em relação a outros indivíduos e grupos sociais. Expoente prestigiado dessa corrente, Franz Oppenheimer diz que o Estado foi criado para regular as relações entre vencedores e vencidos, com o fito de regular e legitimar exploração econômica do grupo vencido pelo vencedor.
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corrente econômica, (3.1) pretensamente fundada por Platão ao expor[14] que "um Estado nasce das necessidades dos homens; ninguém basta a si mesmo, mas todos nós precisamos de muitas coisas ... como temos muitas necessidades e fazem-se mister numerosas pessoas para supri-las, cada um vai recorrendo à ajuda deste para tal fim e daquele para tal outro; e, quando esses associados e auxiliares se reúnem todos numa só habitação, o conjunto dos habitantes recebe o nome de cidade ou Estado". Assim, a união de várias atividades profissionais teria originado o Estado. Origina-se o Estado da união de várias profissões econômicas. (3.2) A. Machado Puerpério faz anota que “CÍCERO encontra como causa do Estado a proteção da propriedade. O feudalismo induz-nos a crer que os Estados particulares se criam com base na propriedade territorial. Na Alemanha existiu uma soberania territorial, baseada na posse da terra (PREUSS), e que esta soberania foi corrente até o fim dos velhos impérios”. (3.3) Karl Marx também credita a causa do Estado à proteção à propriedade. E,
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corrente desenvolvimentista, segundo a qual Estado é uma potência em todas as sociedades políticas, que, todavia, dele não necessitam enquanto se mantêm simplórias, mas que quando atingem grau de complexidade considerável passam ter a necessidade da institucionalizar um ente estatal. No dizer de Dallari “não há, portanto, a influência de fatores externos à sociedade, inclusive de interesses de indivíduos ou de grupos, mas é o próprio desenvolvimento espontâneo da sociedade que dá origem ao Estado”.
Eis aí as principais correntes teóricas que buscam responder quando, como e porque o Estado surgiu. E o que há em comum em todas elas é o fato de o Estado, independente do tempo, da forma e da causa, caracterizar-se por ser uma instituição social, um instrumento, uma tecnologia, manipulada por homens que nada têm de divinos e estão constrangidos pelas contingências materiais do mundo sensível, portanto, limitados por natureza.
E se o Estado é apenas um instrumento criado e manipulado pelos homens, aquela mentalidade mística largamente difundida segundo a qual o ente estatal é detentor de poderes sobrenaturais, não estando ele submetidos sequer às leis da natureza, capaz de garantir desde a saúde até a felicidade das pessoas por meio da concretização dos Direitos Sociais, mostra-se inteiramente desarrazoada, para não dizer, irracional.
Já é hora de se recobrar a sobriedade de entender o Estado como ele de fato é, uma tecnologia limitada e contingente, não um Deus provedor.
Bibliografia
BONAVIDES, Paulo. In Teoria Geral do Estado.
DALLARI, Dalmo de Abreu. In Elementos de Teoria Geral do Estado.
HERMANN, Heller. In Teoria do Estado.
PUERPÉRIO, A. Machado. In Teoria Geral do Estado.
[1] https://www.conjur.com.br/2020-fev-08/estado-fornecer-medicamentos-calvicie-decide-tj-pb
[3] In Elementos de Teoria Geral do Estado, §23.
[4] Noticia PUERPÉRIO.
[5] Registre-se que há outras várias propostas de resposta a essa indagação sobre quando e deu o advento do estado que não serão abordadas aqui, dentre as quais a que especialmente este Professor credita maior razoabilidade que é a teoria libertária.
[6] Denominação atribuída aqui para fins didáticos, sem que haja necessariamente o uso dessa denominação pela doutrina.
[7] “Entre os que adotam essa posição destacam-se EDUARD MEYER, historiador das sociedades antigas e WILHELM KOPPERS, etnólogo, ambos afirmando que o Estado é um elemento universal na organização social humana”, afirma Dallari.
[8] Aqui, a mesma ressalva da nota 5.
[9] Idem.
[10] São representantes dessa corrente minoritária Karl Schmidt e Balladore Pallieri e Ataliba Nogueira.
[11] A chamada Paz de Vestfália (ou de Vestefália, ou ainda Westfália), também conhecida como os Tratados de Münster e Osnabruque (ambas as cidades atualmente na Alemanha), designa uma série de tratados que encerraram a Guerra dos Trinta Anos e também reconheceram oficialmente as Províncias Unidas e a Confederação Suíça.... saiba mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Paz_de_Vestfália
[12] Denominação atribuída aqui para fins didáticos e que evidencia a dimensão formal da mesma corrente citada quando da análise temporal do surgimento do estado.
[13] Idem.
[14] Diálogos, no Livro II de A República.